Lançamento de livro em Salvador debate trajetórias e estratégias das lutas populares no campo baiano.

O estado da Bahia tem figurado no topo das estatísticas sobre o avanço do capital nos territórios e na natureza e sobre os conflitos consequentes dessa movimentação.
O relatório Conflitos no Campo Brasil (2024) organizado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) apontou a Bahia como o terceiro estado em número de ocorrências, posição também ocupada sobre a produção mineral e os conflitos envolvendo a mineração.
O estado ainda apresenta um avanço das áreas de plantio de eucalipto no sul, sudoeste e recôncavo do estado, um intenso processo de apropriação e destruição das águas do cerrado para a agro-exportação, além de ter sido o palco do surgimento do “Movimento Invasão Zero”, organização ruralista que tem atuado com violência contra indígenas e sem terras no extremo-sul.
A situação não se restringe ao campo. Desde 2022 o Instituto Fogo Cruzado registrou 100 chacinas na região metropolitana de Salvador, sendo 61 promovidas pelas forças policiais. Neste quesito a Bahia também se destaca negativamente como o estado com a polícia que mais mata no Brasil, tendo como as principais vítimas a população negra e periférica.
Esse cenário de conflitos tem sido agravado pela forte atuação do estado em defender os interesses das classes dominantes e pela incapacidade das organizações populares em organizar o enfrentamento nas bases e no campo institucional.
Esses e outros elementos da conjuntura foram tema do Dois Dedos de Prosa, organizado pelo CEAS no último dia 6, a partir do lançamento do livro “Questão agrária-ambiental e movimentos sociais – lições a partir do espaço baiano (1998-2022)” do professor e advogado Joaci de Sousa Cunha.
A mesa de debate “Quais os caminhos para as lutas futuras?” contou com o autor, Teresa Santiago (CETA), Gilca Garcia (Geografar/UFBA) e Ruben Siqueira (CPT) que apresentaram reflexões sobre o contexto e as saídas organizativas dos movimentos sociais diante do avanço do agro-minero-hidro-negócio sobre os territórios populares e a natureza.
O espaço contou ainda com a presença de representantes de movimentos sociais, organizações pastorais e de assessoria, professores, estudantes, pesquisadores e a transmissão ao vivo para trabalhadores rurais do Assentamento Dois Riachões (CETA) em Ibirapitanga-BA.

Questão agrária e questão ambiental: partes de um todo
Em seu livro, Joaci Cunha investiga continuidades e rupturas da estrutura agrária baiana e brasileira do último período, destacando a relação direta do capital financeiro com os conflitos socioambientais e o processo de resistência organizada de trabalhadores rurais, quilombolas e pequenos agricultores.
Com foco na Bahia, mas relacionando a conjuntura com o contexto nacional, a obra combina análise econômica, histórica e percepções de um autor que acompanhou de perto muitos dos eventos relatados.
Segundo Cunha, “o livro nasce a partir de duas pesquisas distintas, mas que se articulam teórica e tematicamente.” A primeira pesquisa examina como o avanço do capital especulativo no campo – especialmente após a crise financeira de 2008 – intensificou a concentração de terras, a exploração de recursos naturais e os conflitos no campo baiano.
O pesquisador parte da tese de que “a relação entre a burguesia agrária e a burguesia financeira, associada à sua incidência no Estado, reforçou a estrutura latifundiária e determinou a priorização de uma política econômica baseada na exportação de commodities”. O autor defende que essa relação inviabilizou a execução de uma política de reforma agrária e de proteção ambiental.
Em seu estudo de caso, Cunha aborda a Bacia Hidrográfica do Rio Pardo, entre Bahia e Minas Gerais, “onde o volume de água usado pela irrigação equivale à quantidade demandada pelo abastecimento de mais de 2,2 milhões de moradores” – mais que o dobro da população de toda a Bacia nos dois estados.
A análise “pé no barro” demonstra a problemática dessa relação entre capital e Estado e se converte em uma denúncia embasada sobre como essa dinâmica tem aprofundado a escassez hídrica que ameaça essa e outras regiões, e provocado a expulsão de comunidades camponesas, quilombolas e indígenas de seus territórios por toda a Bahia.
Em resumo, o autor enfatiza a necessidade de se compreender a questão agrária e a questão ambiental como partes de uma mesma questão social, convidando os leitores a refletir “os conflitos socioambientais para além do meio ambiente, da ecologia, mas de toda a estrutura que faz com que os homens e as mulheres sobrevivam.”
Essa afirmação, quando trazida para uma perspectiva política, retoma um debate fundamental para a estratégia e as táticas das organizações populares em conflito com o capital agro-minero-exportador e com o Estado.



Estado, movimentos sociais e o percurso das lutas populares
Pode-se afirmar que os grandes protagonistas da obra em questão são os movimentos sociais do campo baiano. O debate “Quais os caminhos para as lutas futuras” recuperou a trajetória das organizações de forma crítica, avaliando o processo de territorialização, a relação dos movimentos do campo com os da cidade e as táticas empregadas na luta pela reforma agrária na Bahia.
Um dos centros de análise da obra é o desenvolvimento das lutas de massa dos movimentos, que vão desde as manifestações nos grandes centros, ocupações de latifúndios e de enfrentamento direto ao capital e ao Estado, como a histórica ocupação da Usina de Funil em Ubatã em 2005. Esse período de intensa mobilização, segundo o autor, encontra seus limites na luta institucional, onde o Estado “funcionou como um instrumento de regulação dos movimentos sociais”, e “anulou o seu potencial emancipatório e crítico, acomodando-os na burocracia.”
Teresa Santiago reforça a tese apontando a contradição de que “o governo avançou na política de educação da reforma agrária, com políticas como o PRONERA, ao mesmo tempo em que fechou inúmeras escolas do campo.” Para a agricultora essa relação não foi devidamente abordada pelos movimentos, que não souberam mediar a relação entre as instituições e as pautas históricas das organizações.
O livro ainda traça um panorama da política econômica pós-Golpe de 2016, marcada pelo desmonte de direitos para a classe trabalhadora, da “institucionalização” da grilagem de terras e da violência contra populações periféricas no campo e na cidade.
Ruben Siqueira foi categórico ao afirmar que nesse cenário, “em todo o Brasil e também na Bahia, os conflitos territoriais aumentaram e as resistências populares diminuíram”. Para o agente da CPT, essa realidade decorre da violência da estratégia da burguesia agrária-mineral e da dificuldade das organizações em alinharem uma estratégia popular.
Cunha defende que essa dificuldade não é obra do acaso, mas uma ação orquestrada pelo Estado “que adotou políticas localizadas, compensatórias e neoliberais em detrimento de políticas públicas universais e estruturantes para a classe trabalhadora e os movimentos.” Desta forma, a centralidade dos movimentos na disputa dessas políticas contribuiu para o refluxo da luta concreta e para a desorganização popular frente ao avanço do agro-minero-hidro-negócio.





Unidade e estratégia como pilares da reorganização das lutas
Gilca Oliveira reforçou o papel da unidade das lutas para enfrentar o desafio histórico imposto às organizações populares, ressaltando o papel da formação, “mas uma formação no concreto, uma formação que dialogue com as lutas nos territórios.” A pesquisadora ressalta ainda a necessidade de compreender o campo para além dos conflitos, mas “como um espaço de narrativas insurgentes que nos trazem esperanças concretas para reviver e reescrever processos de luta.”
O debate apontou ainda a necessidade de estreitar a relação entre a academia e os movimentos sociais, forjando assim na ciência um caráter transformador e posicionado na defesa dos direitos humanos e dos bens naturais responsáveis por garantir a vida no campo e na cidade.
Sobre a institucionalidade, Questão agrária-ambiental e movimentos sociais apresenta importantes lições sobre seus limites, apontando a necessidade de fortalecer o trabalho entre as bases e a autonomia dos movimentos para incidir concretamente nos espaços estatais e subordinar as lutas institucionais às lutas de massas.
Por fim, o autor enfatiza que “a partir do momento que entendemos a questão agrária em conjunto com a questão ambiental, temos o potencial de unificar as pautas e as lutas dos movimentos sociais”, um esforço que “deve envolver, necessariamente, as organizações do campo e da cidade.”
A partir da abordagem interdisciplinar, baseada na pesquisa e na prática política, e apresentando fontes inéditas do acervo do CEAS, e de organizações como o CETA, CIMI e CPT, Questão Agrária-Ambiental e Movimentos Sociais é uma contribuição fundamental para a discussão estratégica dos movimentos no contexto de crise climática e avanço das políticas neoliberais no Brasil e na Bahia.
Por Mateus Britto/Movimento pela Soberania Popular na Mineração