‘A luta continua’: após suspensão de despejo, comunidade de São Lázaro, em Salvador, segue em defesa da regularização

Moradores contam com apoio da comunidade da Ufba e organizações populares para garantir direito à moradia

Por Lorena Andrade (Brasil de Fato).

Representantes da comunidade tiveram que ir ao Fórum diversas vezes para que reintegração fosse suspensa – Arquivo pessoal.

Na tarde dessa terça-feira (11), a comunidade de São Lázaro, no bairro da Federação, em Salvador, pôde comemorar mais um passo rumo à regularização da sua moradia. Isto porque, após pressão dos moradores, a 16ª Vara Cível Federal deferiu o pedido da Universidade Federal da Bahia (Ufba) de suspensão da ordem de reintegração de posse da área ocupada pelas famílias. A decisão ocorreu apenas dois dias antes do prazo concedido pelo juiz Igor Matos Araújo para a execução do despejo. Agora, moradores e universidade devem se reunir numa comissão para buscar um caminho definitivo para a ocupação da área.

“A comunidade está muito feliz, mas a luta continua. A gente agora vai dar continuidade com a comissão que foi formada. A gente está em comunicação com os representantes da Ufba para alinhar, o mais breve possível, essa data”, destaca Caroline Brito, moradora de São Lázaro e uma das representantes do grupo de negociação.

No dia 13 de outubro, as 14 famílias da comunidade, incluindo a de Caroline, foram surpreendidas com a chegada de uma oficial de justiça, acompanhada de agentes da Polícia Federal, que entregou um documento que definia um prazo de 30 dias para executar a ordem de despejo. A ação, que teve início em 2023, teria começado a partir de uma denúncia anônima feita no portal da Controladoria-Geral da União (CGU), mas os moradores só tiveram ciência do processo com a presença dos agentes em suas casas. O terreno ocupado há mais de 50 anos pela comunidade é da União, atualmente está sob guarda da Ufba.

Direito à cidade

Após repercussão do caso, no dia 15 de outubro a universidade emitiu uma nota afirmando ter solicitado a suspensão da execução do despejo até a conclusão dos trabalhos da comissão de negociação, formada por representantes da instituição e moradores. O pedido, reiterado pelo Ministério Público Federal (MPF), demandava 180 dias para a construção do acordo entre as partes. Após o deferimento, este passa a ser o novo prazo para a resolução do caso.

“A Ufba entende que o princípio da dignidade da pessoa humana e o direito social à moradia, elencados na Constituição Federal, impõem a observância de proporcionalidade e responsabilidade social na execução da reintegração de posse, especialmente diante de situações de vulnerabilidade”, aponta a nota da Ufba.

Por meio de vídeo divulgado nas redes sociais, o reitor Paulo Miguez reforçou que a posição adotada pela universidade é de respeito e diálogo junto às famílias.

“Quero tranquilizar a comunidade de São Lázaro que qualquer medida que venha a ser implementada será amplamente discutida e consertada com as pessoas desta comunidade”, destacou.

Documento em defesa dos moradores foi assinado por cerca de 40 organizações e grupos – Reprodução/redes sociais

Dezenas de organizações e movimentos populares também divulgaram uma nota de repúdio coletiva contra o despejo. O documento denuncia o racismo envolvido no processo e salienta que o caso compõe um processo histórico de expulsão de famílias negras em Salvador.

“Esse caso escancara as contradições de uma política urbana marcada pelo racismo estrutural e institucional, numa lógica da gestão patrimonial excludente. Em nome da ‘legalidade administrativa’, tenta-se apagar o direito constitucional à moradia e o princípio da função social da terra pública”, salienta a carta.

O advogado Juan Gonçalves, assessor do Centro de Estudos e Ação Social (Ceas) e que acompanha as famílias, salienta que o momento agora é fortalecer a organização popular para buscar uma saída definitiva.

“A comunidade continua mobilizada e organizada para garantir o direito de regularização fundiária e o direito histórico à terra que eles têm por residir naquele local”, aponta.

Depois dos quase 30 dias de angústia com a proximidade do prazo para a execução da ordem de reintegração de posse, Caroline Brito salienta que agora ela e os moradores estão esperançosos com a resolução do caso.

“O próximo passo é a gente ter essas reuniões, encontrar um acordo que seja bom para nós, seja bom para eles. Acreditamos que haverá uma regularização na moradia e a gente vai continuar protegendo, cuidando da área e permanecendo no nosso local”, aponta, animada.

Afeto e memória

Caroline, de 27 anos, nasceu e cresceu em São Lázaro. Seu pai, que mora há 52 anos no local, foi um dos primeiros moradores a ocupar o terreno, antes mesmo da instalação do campus da Ufba. A jovem conta que antigamente a área era tomada pelo lixo, e foi seu pai uma das pessoas a transformar a área.

“Ele transformou esse espaço, tirou o lixo, quando não tinha nem lixeira disponibilizada pela prefeitura na comunidade . Ele tirou tudo isso, construiu a casa, transformou em um local habitável, cuidou desse terreno, plantou hoje uma terra frutífera. Graças a Deus e graças a ele, que mudou esse cenário”, conta.

A jovem também critica as narrativas falsas, que surgiram após a ordem de despejo, relacionando a comunidade ao tráfico de drogas.

“Somos seres humanos, a gente trabalha, nós não somos pessoas que têm envolvimento com facções criminosas. Isso foi algo que feriu profundamente todos, sabe? Porque usaram de algo para tentar manchar a imagem da comunidade, criminalizar pessoas que não têm a ver com nada disso.”

A comunidade é vizinha do campus de São Lázaro da Ufba, que desde 1976 abriga a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da universidade. A professora Mariana Possas, vice-diretora da FFCH, destaca que a relação entre universidade e comunidade de São Lázaro é histórica e de muito afeto.

“Acho que desde que São Lázaro virou faculdade que tem uma relação importante com a comunidade em termos de frequentar os estabelecimentos comerciais, de almoçar, de fazer reunião com estudante. A gente não mora aqui, mas a gente frequenta aqui, né. Então, não é só uma relação comercial, é uma relação de afeto também. A gente tem orgulho do nosso campus, a gente tem orgulho de dizer que estamos em São Lázaro, que tem a igreja de São Lázaro, que tem a comunidade de São Lázaro, que tem a festa de São Lázaro. A gente tem orgulho, a gente se identifica”, destaca, emocionada.

A professora salienta que a direção da FFCH, que compõe a comissão de negociação, discorda totalmente da possibilidade dos moradores serem retirados do terreno.

“Isso é uma coisa absurda. O que a gente quer é fazer um acordo com eles, um acordo que seja formal, oficial, e que seja vantajoso para as duas partes. Obviamente, com foco nos moradores, por uma série de razões, porque eles estavam aqui primeiro, porque eles têm uma vida desenvolvida aqui.”

Há 35 anos que Silvinha, dona de um dos bares mais tradicionais da região, vê gerações de estudantes universitários e moradores frequentarem seu estabelecimento – Lorena Andrade/Brasil de Fato

Uma das moradoras mais carismáticas e queridas da região é Sílvia da Silva, mais conhecida como Silvinha. Dona do bar A Boneca Cobiçada, que alimenta e anima moradores e estudantes há mais de 35 anos, Silvinha conta que faz parte da vida de gerações de jovens que entraram na Ufba, se formaram, e hoje, já trabalhando, ainda voltam no bar para matar as saudades.

“Quando eles gostam da gente, eles gostam. Estudante é assim. Eu tenho o maior orgulho. É uma história linda que eu tenho, não dá pra fazer um livro”, conta.

Há décadas morando em São Lázaro, Silvinha conta que não consegue se imaginar vivendo em outro lugar.

“Aqui é a melhor moradia do mundo. Não troco aqui por nada nesse mundo. [Gosto] de tudo, da igreja, das pessoas que vêm aqui, pessoal da televisão, pessoal daqui, tem uma festa aqui no São Lázaro que enche de gente. Acho aqui lindo. Eu gosto de tudo”, finaliza.

Editado por: Luís Indriunas

Publicação Original: Brasil de Fato, 12/11/2025.