“Da Ponte pra cá antes de tudo são histórias”: impactos da ponte Salvador-Itaparica foi tema de debate no CEAS

Atividade reuniu lideranças de Itaparica, da Cidade Baixa e de movimentos sociais da Bahia.

No último dia 11, o Centro de Estudos e Ação Social (CEAS) realizou mais uma edição do Dois Dedos de Prosa, desta vez trazendo um debate sobre as consequências do projeto da ponte que promete ligar Salvador à Ilha de Itaparica, especialmente para populações na ilha e na Cidade Baixa. O encontro reuniu sujeitos afetados, representantes de comunidades, professores e estudantes, que trouxeram à tona relatos críticos ao projeto e seus efeitos socioambientais.

Espaço contou com intervenção artística do Coletivo Incomode. Foto: Comunicação CEAS

A mesa foi composta por Zezé Pacheco do Conselho Pastoral dos Pescadores e Pescadoras (CPP), Rafael Tupinambá, representando a população indígena de Itaparica, o professor Paulo Ormindo da UFBA e Rita Ferreira, coordenadora do Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB). A atividade ainda contou com apresentações artísticas do Coletivo Incomode e participação de representantes de terreiros e de populações impactadas por grandes empreendimentos na Baía de Todos os Santos.

O projeto da ponte, ainda em fase de estudos de viabilidade, tem sido marcado pela especulação sobre territórios tradicionais, com destaque para os mais de 100 terreiros históricos existentes na ilha. A falta de participação popular na concepção do projeto e a falta de debate qualificado com a sociedade também são marcas dessa obra que já ameaça identidades culturais e religiosas com o avanço do setor imobiliário na ilha, e a biodiversidade da qual dependem pescadores e marisqueiras em Itaparica e Salvador.

Zezé Pacheco (CPP) apresentou o cenário de conflitos na Baía de Todos os Santos. Foto: Comunicação CEAS

Colonização e Racismo

Zezé Pacheco (CPP) abriu o debate destacando como a colonização combinou elementos como eurocentrismo, cristianismo, racismo e patriarcado para oprimir povos originários e africanos escravizados. Ele ressaltou que o racismo ambiental é uma realidade no Brasil, onde as regras ambientais são desrespeitadas, causando danos principalmente às populações negras e indígenas. 

Zezé criticou o papel do Estado, que isenta empresas de responsabilidades pelos danos ambientais, e apontou que os megaempreendimentos, como a ponte, não consideram a cultura e a história dos povos locais: “Há um processo de degradação e inexistência de controle e fiscalização ambiental que permite processos de industrialização, exploração mineral, de carga e descarga de produtos químicos que contaminam o ambiente e as pessoas. E há um processo de expropriação do território a partir da negação da identidade das comunidades, de seus direitos e da ameaça aos defensores dos direitos humanos e ambientais.”

Rafael Tupinambá explicou que o processo de luta e resistência em Itaparica não se inicia com a ponte, “o povo Tupinambá luta contra a ocupação no território de Itaparica [há séculos]. A ilha de Itaparica faz parte do território de Kirimurê, que era o território do Cacique Taparica, e foi ele quem recebeu essa primeira frente de ocupação desse território.”

Rafael Tupinambá compartilha processo de retomada na Ilha. Foto: Comunicação CEAS

Rafael problematizou o conceito de desenvolvimento utilizado para justificar a obra, recuperando uma fala autoritária do ex-vice-governador João Leão, que associou desenvolvimento à chegada de luz elétrica, desconsiderando as necessidades das comunidades locais e os modos de vida ali constituídos. A jovem liderança também destacou a falta de saneamento básico nas comunidades indígenas e a poluição de corpos hídricos, além da pressão empresarial que resultou na derrubada de áreas de reserva ambiental na ilha.

Já o professor Paulo Armindo criticou a falta de estudos de impacto ambiental e a motivação eleitoral e lucrativa por trás da obra. Segundo o professor, “a ponte vai criar uma ligação marginalizando toda a parte leste da Baía de Todos os Santos,  onde estão as cidades históricas que foram marginalizadas com o advento rodoviário.” Para o professor, o desenvolvimento das cidades como Santo Antônio de Jesus e Santo Amaro será drenada, gerando esvaziamento dessas cidades e de outras da região para a capital, o que deve aumentar a população de Salvador: “é um projeto burro”, resume.

Armindo também alertou para o impacto nas comunidades pesqueiras e a possível destruição da Feira de São Joaquim devido às obras do canteiro. Cabe ressaltar que esta é a maior feira livre da capital baiana, responsável pelo abastecimento direto ou indireto de cerca de 50% da população soteropolitana, atraindo também comerciantes e consumidores de municípios vizinhos.

Paulo Ormindo (UFBA) apresentou uma série de críticas ao projeto. Foto: Comunicação CEAS

Gentrificação e Expulsão de Comunidades

Rita Ferreira (MSTB) relata que construir uma obra dessa magnitude “envolve ceifar vidas de pessoas que vivem pelo território. Expulsar uma família de seu território por conta de um projeto do governo do estado significa que muitas delas vão morrer, porque elas não querem sair de dentro do que é delas.” Ela criticou o processo de gentrificação e o sucateamento intencional do ferry boat, que servia como meio de transporte para muitas comunidades. A coordenadora também apontou que o Estado manipula o debate entre “progresso” e “atraso” para dividir a classe trabalhadora e justificar obras que beneficiam apenas o capital.

Rita Ferreira (MSTB) relatou o cenário de lutas no Subúrbio Ferroviário. Foto: Comunicação CEAS

Eliana Falayó, representante de comunidades de terreiro da Ilha de Itaparica e integrante do terreiro Omo Ilê agboula, denunciou as violências enfrentadas pela população local, como a exploração sexual e o genocídio do povo negro. Ela criticou a omissão de órgãos como a Sepromi (Secretaria de Promoção da Igualdade Racial), que deveriam proteger essas comunidades.

Gilson, do Movimento Verde Trem comparou o projeto de construção da ponte com o processo violento de construção do VLT no Subúrbio Ferroviário, destacando a desinformação e a falta de participação popular, especialmente das populações diretamente afetadas, como os pescadores e marisqueiras. O ativista mostrou como duas obras distintas fazem parte de um mesmo projeto que visa a gentrificação dos territórios periféricos na Baía de Todos os Santos.

Eliana Falayó (Omo Ilê agboula) compartilha cenário de conflito nos territórios tradicionais de Itaparica. Foto: Comunicação CEAS.

Por um projeto popular de desenvolvimento na Baía de Todos os Santos

O debate realizado no Dois Dedos de Prosa evidenciou que a construção da ponte Salvador-Itaparica não é apenas uma obra de infraestrutura, mas um projeto que reflete as desigualdades históricas e estruturais do Brasil. A atuação do governo do estado, em parceria com grupos privados nacionais e internacionais, ao pautar um projeto de desenvolvimento sem a participação popular tem colocado diversas populações em conflito na cidade e no campo baiano. 

As falas dos participantes destacaram a necessidade de conceber um desenvolvimento que respeite os territórios populares, os modos de vida historicamente constituídos e o meio ambiente. As organizações participantes da atividade também ressaltaram a necessidade e a importância de conectar as lutas nos territórios periféricos para fazer um enfrentamento aos projetos e garantir a permanência das populações nos seus espaços historicamente ocupados.

O Dois Dedos de Prosa é um espaço organizado organizado pelo CEAS para fomentar o debate plural entre as organizações e os lutadores e lutadoras populares. As iniciativas de unidade entre esses sujeitos, como a Campanha contra a Violência nos Territórios Negros e Populares fortalece os processos de luta, resistência e solidariedade entre as populações impactadas pelo atual projeto de desenvolvimento no campo e na cidade.

Comunicação CEAS