Direito à cidade em transe: desafios da luta urbana e a luta dos movimentos sociais em tempos de adversidade – Entrevista com Júlia Esther (PAD)

O Centro de Estudos e Ação Social recebeu a visita de Júlia Esther, secretária executiva do Processo de Articulação e Diálogo Internacional (PAD), entre março e abril de 2025.

Entre visitas a comunidades urbanas, conversas sobre a conjuntura mundial e os rumos da cooperação internacional e reencontros com representações de diversas organizações populares, Júlia nos honrou com uma pequena entrevista para o podcast De Olho na Conjuntura.

Confira na íntegra a conversa sobre os novos tempos para a luta urbana, a reconfiguração geopolítica mundial e os caminhos para as lutas futuras dos movimentos urbanos no Brasil.

Júlia Esther. Foto: Comunicação CEAS.

Comunicação CEAS: É notável o seu histórico de militância na luta urbana, seu conhecimento de vários territórios, lutadores e lutadoras, e esta semana você esteve conosco, revendo lideranças do MSTB e outras organizações, além de assessores históricos do CEAS. A partir desse olhar da totalidade, como você tem visto os maiores desafios na luta urbana, pelo direito à moradia, direito à cidade e a questão da segurança pública, com base nos seus diálogos e andanças?

Júlia Esther: Essa vivência e convivência com o CEAS e com os movimentos sociais, além do diálogo e da troca com algumas organizações parceiras, colaboradores e assessores que passaram ou ainda estão aqui, proporcionaram uma fotografia, ainda que não completa, do contexto da luta pelo direito à cidade em Salvador. Isso, obviamente, não se desvincula de um contexto nacional e, inclusive, internacional. Se olharmos o que ocorre nos EUA, nas eleições na Alemanha e em alguns países europeus, e claro, na América Latina, podemos dizer que o mundo está em transe. E esse mundo em transe traz boas razões para provocar reflexões no âmbito local e nos territórios. Tendo em vista que, no cenário nacional, o Brasil vive um momento de muita dicotomia, especialmente do ponto de vista do movimento social e das organizações sociais do campo democrático. Elas estão numa posição de entreolhar, por exemplo, o governo Lula, fazer suas análises e críticas, e, por outro lado, há uma ameaça permanente e continuada sobre nossas cabeças da ascensão da direita. Aliás, da ascensão de uma extrema-direita que, infelizmente, está bastante vigorosa no mundo inteiro. Então, o que está acontecendo aqui tem muito a ver e dialoga com o que ocorre no mundo.
Certamente, isso repercute localmente. E a convivência esses dias com os movimentos aqui, elas trazem isso de forma muito clara, veemente e muito preocupante. Uma preocupação não só com o acesso e a garantia de seus direitos – no sentido objetivo do direito à cidade, direito de ir e vir, ao trabalho, à alimentação, à educação, à saúde – mas uma preocupação com novos sujeitos que surgem nesses territórios e que impedem, de uma forma muito clara, esse direito de ir e vir, e inclusive impedem a luta por esses direitos, como à saúde e à escola, como eu disse antes. Esses novos sujeitos, eles estão, vamos dizer, fora da governabilidade dessa população que está sujeita a ele, mas se o Estado quiser resolver, resolve. O problema é que, de fato, há uma aliança com o Estado desses novos sujeitos que roubam a juventude, que assassinam a juventude e que impõem regras e condicionantes para a vivência e a convivência nos territórios. Isso é muito diferente da década passada, onde o CEAS chegava e atuava, podia convocar reuniões no próprio território, naquele próprio local, fazer os cursos de formação, ou as chamadas para as marchas e mobilizações. Isso hoje tem um novo elemento que inibe, que prejudica essa ação política social nos territórios. Então, é super necessário que, aí olhando para esse lugar que é o CEAS, que ele esteja muito atento a isso e avaliando permanentemente as condições, a estratégia para a superação de tal coisa, né? Desse, desses desafios, desse cenário.

“Se olharmos o que ocorre nos EUA, nas eleições na Alemanha e em alguns países europeus, e claro, na América Latina, podemos dizer que o mundo está em transe. E esse mundo em transe traz boas razões para provocar reflexões no âmbito local e nos territórios.”

Roda de conversa sobre cooperação internacional no CEAS. Foto: Comunicação CEAS.

Comunicação CEAS: De fato são muitos elementos que arrefeceram a capacidade da organização popular? E as pautas históricas que discutíamos antes, como a desmilitarização, a reforma urbana, você acha que elas perderam a validade ou é uma incapacidade nossa de colocá-las em discussão novamente? Isso pode retornar?

Júlia Esther: Não, elas nunca perderam a validade, né? Até porque nós não conquistamos isso. Nós não conquistamos ainda o real direito à cidade. Nós não conquistamos ainda as políticas adequadas à reforma urbana. Um exemplo concreto: a prefeitura de Salvador vai fazer a revisão do plano diretor, 9 ou 10 anos depois [da aprovação do último] e já constituiu um grupo de trabalho para tal coisa, mas parece-me que, propositalmente, está postergando o debate público sobre esse plano. Porque quanto mais adiar, postergar, mais permite que o capital imobiliário avance sobre o perímetro urbano. Então, essa é uma pauta viva, muito viva ainda e muito apropriada. O problema é que nós temos esta pauta, mas temos uma outra que surge no cenário nos últimos 10 anos, que é esse outro ator, esse outro sujeito político.

“Esse ‘esperançar’, parte desse sujeito político que está ali presente nos territórios. Muito, muito especialmente a partir do sujeito juventudes, do sujeito mulheres, que são, pode-se dizer, quem move, quem não perde a esperança em momento algum no sentido de caminhar e de garantir seus direitos.”

Comunicação CEAS: De onde virá o combustível necessário para as mudanças nessas pautas? Sabemos que a população vai continuar resistindo e lutando, mesmo diante de dificuldades. Como você visualiza isso, é possível  ‘esperançar’ nesse período tão adverso?

CEAS recebe Júlia Esther, representantes do MSTB, GRUMAP e Coletivo Incomode. Foto: Comunicação CEAS.

Júlia Esther: É, como você mesmo disse, a partir mesmo da história, da trajetória e da potência dos movimentos sociais. Se os movimentos sociais não se abateram com a ditadura [militar], eles não vão se abater com esse novo formato de ditadura, porque isto é uma nova forma. Então, essa potência, esse ‘esperançar’, parte desse sujeito político que está ali presente nos territórios. Muito, muito especialmente a partir do sujeito juventudes, do sujeito mulheres, que são, pode-se dizer, quem move, quem não perde a esperança em momento algum no sentido de caminhar e de garantir seus direitos. Então, é claro que por vezes pode pintar o desânimo, o cansaço, mas a prova concreta é, por exemplo, a preocupação dos movimentos de Salvador com a elaboração do novo plano diretor. Então, se não tivesse esse ‘esperançar’ e essa potência toda, isso não seria uma pauta importante e presente na vida desses movimentos, desse ser político. Então, eu acho que não existe o ‘desesperançar’, existe um cansaço de tanto lutar. Tem ocupação aí que está há 15 anos esperando um assentamento num conjunto habitacional. Não tem justificativa isso. Como se espera 15 anos, tendo em vista um município que foi beneficiado por programas como Minha Casa Minha Vida? E mesmo assim, estão de pé, lutando para garantir esse direito à moradia. Então, certeza, esse sujeito político é a nossa resposta.

Por Mateus Britto
Comunicação CEAS