“Esse projeto é para o povo?” – Roda de Conversa discute memórias e lutas da população negra no Subúrbio Ferroviário de Salvador

Movimentos e comunidades denunciam impactos causados pela realização de grandes projetos no território.

Foto: Comunicação CEAS

No dia 31 de agosto, representações de movimentos, coletivos e organizações populares se reuniram em mais um espaço do Dois Dedos de Prosa organizado pelo Centro de Estudos e Ação Social (CEAS). O tema “Memória e resistências negras: lutas e memórias do Subúrbio Ferroviário de Salvador” inicia com as falas de Vilma Soares, coordenadora da Associação Cultural Acervo da Laje, e de Nadjane Santos, militante do Movimento Sem Teto da Bahia (MSTB) e do Coletivo Incomode, que compartilharam suas experiências na luta por moradia, memória e direito ao território.

A roda de conversa teve como objetivo o resgate da história e do pertencimento da população negra do Subúrbio Ferroviário e a identificação dos desafios em comum das populações periféricas da cidade. Salvador, além de passar por um grave processo de violência contra a população negra, vive um período de intensificação de grandes projetos que têm causado a expulsão das populações dos territórios.

Foto: Comunicação CEAS
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Nadjane Santos destaca o projeto de duplicação da rodovia do DERBA, obra ligada ao projeto do VLT que retirou o trem do subúrbio como como centrais para a discussão sobre o território: “Quando cheguei [no Subúrbio] ainda existia o trem. A ocupação Paraíso ficava ao lado da APA e a área era muito rica, havia uma relação de subsistência com essa riqueza, como frutas, plantas, água. Com a retirada do trem, fica evidente o interesse nessas áreas verdes, interesses no Subúrbio.” 

A militante do MSTB chama a atenção para a situação dos pescadores que dependiam do trem para o transporte de mercadorias e a falta de solução para a atual situação. “Os pescadores de Plataforma, do Porto da Sardinha, que viviam da venda de seus pescados na calçada pagando 0,50 centavos, como vão sobreviver com um modal muito mais caro?”

Para Nadjane, o projeto está associado a uma política de precarização de serviços públicos essenciais para a vida da população: “a questão da educação para as crianças, a distância das escolas das comunidades, a realidade dos postos de saúde e do atendimento, são desafios centrais para o território”. Além de impactos socioeconômicos, a militante afirma que o projeto “mexe com a própria identidade do Subúrbio Ferroviário”, fator que agrava o processo de expulsão e visa enfraquecer o pertencimento ao território.

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Rita Ferreira, coordenadora estadual do MSTB e da ocupação Quilombo Paraíso, questiona para quem é esse VLT, se este projeto é mesmo para o povo que mora no subúrbio? E responde: “Como este projeto pode ser para nós, se foram retiradas famílias? se os pescadores perderam seu sustento? Pois antes pescavam, pagavam 0,50 centavos e iam vender sua mercadoria. Agora chega o VLT que irá custar o valor do transporte público”. Destacando que a mudança repercute diretamente na mobilidade dos moradores do Subúrbio Ferroviário que viviam do seu comércio. 

Além disso, a militante também correlacionou as obras de duplicação da Estrada do Derba à estratégia do poder público de favorecer o capital imobiliário através do apoio à implantação de redes de hotelaria em Paripe, próximo a APA do Rio do Cobre, sem que houvesse questionamentos.

Direito à Memória

A tentativa de apagamento territorial promovida pelo Estado é combatida diariamente pelas organizações populares do Subúrbio. Foi nesta perspectiva que Vilma Soares compartilhou a sua trajetória, de quando foi acolhida pelo Subúrbio a quando passou a acolher as pessoas com o Acervo da Laje: “Eu era professora em 1994 nas palafitas e fui educada para fortalecer aquela comunidade.

O Acervo da Laje é um museu comunitário que conta as histórias de resistências do Subúrbio Ferroviário através de exposições permanentes de elementos da cultura, das vivências e das criações dos artistas locais. As exposições acontecem em duas casas e reúnem fotografias, livros, documentos históricos e abrem espaço para artistas do território como forma de valorização da memória negra e suburbana. Para Vilma, trata-se de “atuar com a beleza” e “com a força da comunidade”

Acervo da Laje está localizado em São João do Cabrito, localidade de Plataforma e é o único museu do Subúrbio do universo de 22 bairros que compõem o território. A coordenadora Vilma defende que “A periferia é forte, tem arte, tem resistência, tem história e memória. Se todas as comunidades conseguissem se mobilizar, ter a vivência de comunidade, relações solidárias, as comunidades seriam melhores.” 

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Desafios para a organização popular

A edição do Dois Dedos de Prosa foi permeada pelo tema das ações de enfrentamento aos projetos que ameaçam as populações periféricas em Salvador, especialmente no Subúrbio Ferroviário. Segundo a urbanista Apoena Ferreira, assessora do CEAS, “336 famílias já foram retiradas de suas casas pelo projeto do VLT e há previsão de desapropriação de moradia de mais 680 famílias”. Para Apoena esta é “mais uma dimensão do genocídio ao povo preto, um genocídio que atua nos corpos, nos territórios e na memória das pessoas, das comunidades. É muito importante estarmos articulados para o enfrentamento, pois o projeto envolve interesses do capital turístico, imobiliário e financeiro, todos viabilizados pelo Estado.”

A roda de conversa, ocupada predominantemente por mulheres negras, apontou para a necessidade de unificação das lutas nos territórios periféricos. Maura, que integra a Articulação do Centro Antigo de Salvador defende que “Além de fazer as denúncias, precisamos conspirar, pensar o que podemos fazer diante do constante racismo, da retirada de direitos. Foi conspirando que os nossos sempre fizeram, fosse dentro da casa grande, dentro das senzalas ou nos cafezais.” 

Em meio a reverberação das lutas e trajetórias, Rita Santa Rita, do Grupo de Mulheres do Alto das Pombas (GRUMAP), enfatiza que o Subúrbio é também a luta e presença (em memória) de Antônia Garcia, força da resistência e da organização popular. Destacou a importância da formação política, bem como a necessidade de retomar a construção de um projeto de sociedade. Reforçou que tramas e histórias precisam ser contadas pelo povo negro, apontando para a importância de acreditar e tramar projetos de sociedades do Bem Viver.

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