Vala de drenagem irregular ameaça sustento de comunidades extrativistas e biodiversidade em Canavieiras, no sul da Bahia
A imagem mostra uma enorme área de Mata Atlântica cortada por uma faixa retilínea de água ao centro. “Parece um rio”, afirma o menino ao ver a fotografia. Todos concordam.
No entanto, o que parece belo e natural é na verdade uma vala de drenagem construída de forma irregular por fazendeiros em Canavieiras, no sul da Bahia, distante 426 km de Salvador.
A vala está próxima à Reserva Extrativista (RESEX) de Canavieiras, Unidade de Conservação criada em 2006, que possui uma área de mais de 100 mil hectares divididos em bioma marinho, manguezais e Mata Atlântica.
Sua população é composta por mais de duas mil famílias pescadoras e marisqueiras que combinam as seculares técnicas pesqueiras à agricultura familiar e à criação de animais.
O pescador R. C., 34, nascido e criado na comunidade de Campinho, a mais próxima da vala, afirma que as comunidades produzem “manga, mangaba, coco, jussara, açaí, polpa de fruta, mandioca, milho, batata doce, galinha, até umas cabecinhas de gado tem aí”.
Ele conta que a criação da reserva se deu “após vários anos de luta” das comunidades na região. A área vinha sendo disputada por setores do ramo da carcinicultura (criação de camarões) e da pecuária, atividades que vinham degradando o bioma e afetando a atividade econômica das famílias.
O decreto de criação garantiu a permanência das famílias na reserva e a continuidade dos seus modos de vida, embora a pressão do agronegócio nunca tenha cessado.
Entre valas e cercas
O conflito mais recente se dá próximo às comunidades de Campinhos e Peso. Entre 2017 e 2018, o INEMA autorizou a instalação de empreendimentos agropecuários ao redor da RESEX. Estas licenças foram revogadas em fevereiro de 2023 pelo próprio INEMA após intervenção do ICMBio que demonstrava que parte dessas propriedades estavam sobre território da reserva.
No entanto não houve recuo das cercas após a revogação. Segundo comunitários, foram instalados dois cercados: um de arame farpado e posteriormente outro elétrico. R. C. ainda relata que o gado bovino danificou as cercas de moradores da comunidade, causando prejuízos às lavouras: “eles [os fazendeiros] se negaram a consertar. Eu só tenho a falar que Campinho vai morrer com isso aí”.
Comunitários relataram que o cercamento impediu o acesso da população extrativista às áreas dos dendezeiros, dos quais muitas famílias retiravam seu sustento. O agricultor R. C., 34, afirma que a vida na comunidade após esse avanço dos latifundiários “virou um terror. Nós tínhamos liberdade e agora estão querendo tirar nossos direitos”. R. C. Se queixa que foi impedido de usar uma estrada que “segundo os antigos, tinha mais de 300 anos (…): me bloquearam, meteu cerca, tirou o direito de ir e vir”.
A principal motivação do ICMBio para investigar as autorizações dos empreendimentos agropecuários foi a denúncia das comunidades sobre a construção de uma imensa vala de drenagem autorizada pela Prefeitura de Belmonte, cidade limítrofe a Canavieiras.
Em notificação extrajudicial a um veículo de comunicação que denunciou a construção da vala, a defesa dos pecuaristas afirmou que a autorização se deu com base em pesquisas ambientais e que o empreendimento possui apoio das comunidades locais.
Entretanto, segundo representantes da Associação Mãe dos Extrativistas da Resex de Canavieiras (AMEX) o projeto da vala e as pesquisas mencionadas não foram apresentadas às comunidades, o que motivou as mesmas a buscarem os meios legais de denúncia.
No projeto da vala, consta que ela possui pontos de 1,70m de profundidade e cerca de 7m de largura. O projeto prevê mais de 20km de vala para drenar os brejos da região e introduzir a pecuária. Entre os impactos previstos, estão a intrusão de água salina no lençol freático que abastece as comunidades de Campinhos e de Peso e danos ao habitat de diversos animais coletados pelas famílias, como o guaiamum.
Mesmo sem a conclusão do processo ambiental, foi dado continuidade ao empreendimento, fato que levou, em abril de 2024, representantes da AMEX a se reunirem com o MPF com o objetivo de “impedir a degradação ambiental provocada pelo empreendimento, que afronta a legislação ambiental”, por se tratar de drenagem mecanizada de área úmida, incluindo área de mangue.
O MPF já havia emitido, em 2019, recomendações de suspensão da realização da vala de drenagem por parte dos fazendeiros, além de suspensão da autorização expedida pela Prefeitura de Belmonte.
Em abril de 2024 o ICMBio redigiu Informação Técnica constatando que a suspensão da licença e a “suposta paralisação da drenagem não foram suficientes para evitar a secagem de brejos que antes eram perenes, a diminuição na quantidade de água nos poços para consumo humano, a dessedentação animal e a supressão da vegetação nativa para plantio de capim para pastos.”
Segundo o ICMBio, o principal impacto provocado pelas valas de drenagem é a “diminuição na disponibilidade de água no local”. Por se tratar de uma área de brejos e mangues, valas nessas proporções tendem a afetar toda a cadeia produtiva da população extrativista, causando a diminuição de peixes e mariscos que se reproduzem nessas áreas e comprometendo a água para consumo das populações na agricultura e no uso doméstico.
Além dos efeitos da vala, não se pode deixar de considerar a atividade que elas objetivam viabilizar: a pecuária. Segundo o ICMBio, a “instalação de grande produção e pastoreio de gado leva ao aumento de matéria orgânica no solo, devido às fezes dos animais, o que é vetor certeiro para casos de eutrofização [processo de poluição de corpos d’água que diminuem seus níveis de oxigênio] e poluição dos corpos de água locais.”
Esses fatores afetam diretamente a disponibilidade e a qualidade do pescado dos quais dependem as famílias. Há reconhecimento na região de Canavieiras e Belmonte acerca da qualidade sanitária dos pescados provenientes da RESEX. O ICMBio reconhece “que a pecuária – que busca se consolidar no local dos brejos – pode vir a descredenciar a confiança regional nos produtos da RESEX, causando sua desvalorização ou dificuldade de comercialização.”
A informação técnica também considera que a atividade pecuária aumenta a existência de estradas nas áreas de mata, modifica o microclima local e aumenta a chance de existência de queimadas.
Ameaças a curto, médio e longo prazo
Além dos prejuízos ambientais, econômicos e da violação do direito de ir e vir dentro da reserva, comunitários afirmam que vêm sofrendo ameaças por parte dos fazendeiros. As ameaças são destinadas principalmente às lideranças das comunidades e aos que não aceitam acordos com os pecuaristas. Entre os “acordos”, destacam-se o de cessão de pontos de energia da comunidade para alimentar a cerca elétrica e o de uso de terras da RESEX para a criação bovina.
Não são incomuns processos de coação e ameaças às comunidades da RESEX de Canavieiras. O “Mapa de Conflitos, Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil” organizado pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) relata que, no processo de criação da RESEX, entre 2001 e 2006, comunitários, agentes do IBAMA e de ONG’s que atuavam na região foram ameaçados.
A violência continuou nos anos seguintes, tendo o episódio de 20 de maio de 2009 como um dos mais emblemáticos. Na ocasião, cinco canoas da comunidade de Campinho foram incendiadas. À época, representantes da AMEX consideraram a possibilidade de que o incêndio tenha sido criminoso, dadas as tensões ocorridas entre carcinicultores e as comunidades pesqueiras.
J. S., integrante da AMEX, afirma que “são muitas forças contrárias à RESEX atuando na região” e que “a violência é uma prática corrente”. O pescador relata que além da pecuária e da carcinicultura, existem movimentações de busca do minério de titânio ao redor da unidade de conservação, fator que deixa a reserva na mira de muitos setores do capital.
“Eles acabam com os brejos e o mangue para implantar a carcinicultura. Se acabar com a carcinicultura eles põem o gado. Quando não der mais para o gado, eles exploram o titânio”, arremata.
Resistência e organização popular
A ofensiva de setores do agronegócio sobre a Reserva Extrativista de Canavieiras faz parte de um complexo cenário de conflitos por terra na Bahia. Com 249 registros, a Bahia foi o estado com o maior número de conflitos, segundo o relatório de Conflitos no Campo da Comissão Pastoral da Terra de 2023. Destes, 44 aconteceram na região sul, envolvendo populações indígenas, quilombolas, sem-terra e fazendeiros, empresas de celulose e setores imobiliários.
Esse tensionamento vem se agravando nos últimos anos, após a organização da milícia autodenominada de “Movimento Invasão Zero”, cuja atuação provocou a morte da indígena Nega Pataxó em janeiro de 2024.
Além dos conflitos diretos, movimentos sociais e organizações da sociedade civil alertam que grandes empreendimentos – como a Ferrovia Oeste-Leste e o Porto Sul – tendem a aumentar a especulação sobre o campo, podendo provocar expulsão de comunidades tradicionais e degradação ambiental.
Em Canavieiras, além da pressão de pecuaristas e de carcinicultores, setores do capital mineral já possuem autorização para a pesquisa de titânio. J. S., da AMEX, afirma que “por conta disso, a RESEX se tornou um importante ponto de preservação da mata e das comunidades extrativistas. São mais de 20 mil hectares preservados de Mata Atlântica.”
O pescador relata que a associação realiza, em parceria com outras organizações, atividades e projetos nas comunidades, a fim de fortalecer a consciência ambiental e impedir a crescente degradação das matas, das águas e das unidades produtivas.
“É um grande intercâmbio entre as comunidades que vêm sendo afetadas pela devastação da Bacia do Rio Pardo. É um trabalho de formiguinha que tem o protagonismo de mulheres e de jovens do norte de Minas ao sul-sudoeste da Bahia”, conclui.
Publicado originalmente em https://diplomatique.org.br/isto-nao-e-um-rio-muito-pelo-contrario/.
*Os nomes dos entrevistados foram preservados por questões de segurança.