Edição do Dois Dedos de Prosa reuniu representações de movimentos e organizações populares da Bahia no último dia 25.
Quando Carlos Walter Porto Gonçalves publicou “Paixão da Terra: Ensaios Críticos de Ecologia e Geografia” em 1984, o MST acabava de surgir enquanto um movimento nacional. O Brasil vivia o último ano do regime militar e as lutas pela redemocratização se uniam a uma ofensiva dos trabalhadores no campo sobre os latifúndios improdutivos em todo o país.
Ao mesmo tempo, ocorria a inauguração da Usina hidrelétrica de Itaipu (obra que causou a expulsão de quase 40 mil trabalhadores do campo e impactos irreversíveis ao Rio Paraná) e uma série de crimes ambientais nas cinco regiões brasileiras, erroneamente tratados como “acidentes ecológicos” pela imprensa.
Em “Paixão da terra”, o geógrafo trata de diluir a confusão causada por essa abordagem sobre a responsabilidade ambiental de setores privados e do Estado e acaba por fornecer pistas fundamentais para a compreensão dos impactos do modelo neoliberal sobre a natureza e os povos do campo e da cidade.
Esse foi o tema do “Dois Dedos de Prosa – Paixão da Terra: entre a questão agrária e ambiental”, edição que ocorreu no Centro de Estudos e Ação Social na última sexta-feira, 25. Segundo Maicon Leopoldino, assessor do CEAS, “o objetivo do espaço, além de homenagear o companheiro que partiu há um ano atrás, foi proporcionar o debate e a atualização de dois temas inseparáveis, o da questão agrária e ambiental.”
A mesa de abertura foi composta por Nena, da Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto, pelo engenheiro agrônomo Samuel Britto e por Ruben Siqueira da Comissão Pastoral da Terra.
Nena, relatou que “nós de Correntina, tivemos a honra e o privilégio de estar com Carlos Walter e ele pôde dar sua contribuição para nós que moramos lá. Tivemos também a honra de, depois de sua passagem, continuar com sua presença viva, que são as suas cinzas, plantadas em uma árvore na Escola Família Agrícola e também depositadas no Rio Arrojado.”
A camponesa trouxe a memória do Levante dos Ribeirinhos de Correntina em 2017, cujo contexto foi analisado por Carlos Walter no livro “Os Pivôs da Discórdia e a Digna Raiva: uma análise dos conflitos por terra, água e território em Correntina–BA (2020)” em conjunto com o engenheiro agrônomo Samuel Britto.
A manifestação surgiu após as denúncias dos crimes ambientais de empresas sobre o Rio Corrente e envolveu mais de mil pessoas na cidade. O levante culminou na ocupação da Fazenda Igarashi, ação que destruiu máquinas, veículos e equipamentos de captação de água da empresa.
Samuel Britto destacou a facilidade que tinha Carlos Walter em transitar entre o olhar acadêmico e a compreensão popular do mundo, num constante “reabastecimento da leitura do Brasil profundo quando se está junto ao povo.” O agrônomo defende que “estamos carentes disso, perdemos um pouco desse sentido da escuta.”
O co-autor de “Pivôs da discórdia” relembra que Carlos Walter “transitava por todos os ambientes, estudou os seringueiros da Amazônia, conhecia a fundo a realidade das comunidades do Cerrado, entre outras questões” e que a simplicidade era a sua maior marca, “apesar de ser um cientista, que tinha um conhecimento e falava de várias coisas, era sempre muito brincalhão e gostava de brincar com as palavras.”
Rubem Siqueira avaliou que “a maior homenagem que podemos fazer a Carlos Walter é estudar a sua obra”, e que a obra do geógrafo “serve para nos subsidiar nesse momento de urgência da ação. A questão da terra só foi resolvida enquanto reforma quando houve luta concreta, só quando houve ocupação de terra, retomada indígena, quilombola, geraizeira, quando os pescadores inventaram o território pesqueiro, isso é avanço.”
As organizações presentes, à luz da contribuição do geógrafo, se debruçaram sobre a atual conjuntura agrária e ambiental baiana e apontaram os desafios e as possibilidades de atuação. A Bahia, que lidera em número de conflitos agrários entre os estados brasileiros, passa também por uma pressão ambiental diante de grandes projetos da mineração, das energias renováveis e do agronegócio.
O Dois Dedos de Prosa foi uma realização da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR), Centro de Estudos e Ação Social (CEAS), Comissão Pastoral da Terra (CPT), Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) e Grupo de Pesquisa GeografAR/UFBA.